Editorial a convite
Publicado em vários países, o Livro Anual de Psicanálise (LAP) reúne artigos selecionados do International Journal of Psychoanalysis (IJP). Esses textos, traduzidos do inglês para o idioma local, tornam possível, a um maior número de leitores, o acesso ao trabalho clínico e teórico de psicanalistas do mundo inteiro.
Em português desde 1994, o LAP, além do corpo editorial, conta com um grupo de cerca de trinta assessores – provenientes das várias sociedades de psicanálise brasileiras ligadas à IPA. Cada um desses colegas faz uma lista dos melhores artigos publicados no ano, fornecendo assim subsídios para a próxima edição do Livro Anual. De posse dessas sugestões, cabe ao corpo editorial selecionar aqueles que permitam ilustrar a diversidade do pensamento psicanalítico; seus avanços e seus debates. E last, but not least, contamos sempre com a abnegada colaboração de muitos tradutores que enfrentam desafios especiais para encontrar as palavras justas para traduzir as peculiaridades do vocabulário específico da psicanálise.
Nesse ano, como participante do grupo de assessores, recebi o honroso convite para escrever o editorial da sua próxima edição, a de número XXX.
Desafio difícil e estimulante que me levou a ler todos os artigos selecionados em busca daqueles poucos elementos informativos que pudessem indicar com clareza quais os temas e hipóteses pertinentes, estimulando assim o interesse e a curiosidade dos leitores.
Foi um exercício prazerosamente exaustivo que também conduziu minha própria curiosidade para outras trilhas da psicanálise que não os caminhos que percorro habitualmente. Também por isso agradeço aos editores que me indicaram para a tarefa.
Volume I
A detalhada apresentação do material clínico do caso Ellen, apresentado por Georg Burns e discutido, passo a passo, por Roosevelt Cassorla e Michael Ian Paul, convoca o leitor-psicanalista a entrar imediatamente na roda e participar da vivacidade desse encontro. Os comentadores destacam faces diferentes e complementares do caso; Cassorla segue as “complexas configurações narcísicas que protegem a paciente e o par analítico do contato traumático com a realidade triangular” enquanto Michael Paul acompanha a emergência de estados mentais pré-natais na transferência bem como a “… importância da confusão entre a gravidez, mental e física, tal como surgiram na evolução momento a momento nas sessões”
Nas conversas contemporâneas, César Botella, contrapondo o modelo arqueológico de análise, que busca o que está encoberto, fala sobre “memórias sem recordações” a exigir uma análise transformadora “cujo objetivo não é descobrir, e sim, criar o que falta e que é fonte de sofrimento, atribuindo-lhe novos significados”
Na seção seguinte, teoria e técnica psicanalíticas, outras reflexões, que têm como referência explícita ou implícita as “memórias sem recordações” mencionadas por Botella, orientam os artigos de Thomas Ogden sobre a vida não vivida e o de Alessandra Lemma sobre uma forma particular, adesiva, de transferência, que se atualiza em um setting encarnado assim nomeado porque inclui, como elemento primordial, as qualidades sensoriais do corpo do analista.
Ainda nesse grupo H. Faimberg, valendo-se do “encontro” entre Bleger Winnicott em sua mente, aproxima os conceitos de função paterna e setting analítico.
Na sequência o instigante artigo de Jonathan Lear, situando a psicanálise na tradição filosófica ocidental ilustra, com material clínico, sua convicção de que a psicanálise “…proporciona não apenas sabedoria teórica sobre o humano, mas também sabedoria prática de uma espécie peculiar”
Em Bion e o sublime, Giuseppe Civitarese avalia que a estética do sublime subjaz como matriz oculta de uma série de conceitos de Bion (O, capacidade negativa, terror sem nome, o infinito, o inefável, linguagem de consecução, uníssono etc.)
Ao propor essa hipótese, espera contribuir para o estudo das fontes de referência de Bion e mostrar que esses conceitos não são simplesmente justapostos e sim inter-relacionados de forma dinâmica, o que, no seu entender, aumenta significativamente não só sua inteligibilidade teórica como também sua utilidade na prática clínica.
No artigo seguinte, o impacto da crise econômica que interfere na continuidade de muitos dos nossos atendimentos é examinado por Anna Christopoulos, analista grega que atende em Atenas, preocupada em discriminar, entre o que vem de fora e as delicadas interações da dupla analítica.
E finalmente, completando esse primeiro volume, Otto Kernberg, na continuidade de contribuições anteriores, focaliza as constelações específicas de desenvolvimento transferencial em diferentes síndromes narcísicas e destaca que seu modelo conceitual foi inspirado na obra de muitos autores e apresentará “… a forma como vinculo a obra deles com a minha para compor um quadro teórico integrado”.
Volume II
No estudo interdisciplinar apresentado nesse volume, Lesley Marks, delineia, em primeiro lugar, a teoria da criatividade de Milner que, embora divergente, tem suas raízes no pensamento freudiano. Enquanto Freud, entende a necessidade de ilusão como proteção contra os instintos primitivos do homem, Milner a considera um precursor necessário para compreender o mundo interno. Discorda também de Klein por não acreditar que o trabalho do artista se destina a reparar o que foi perdido, mas à criação do que antes não existia. Em seguida relaciona a teoria da percepção de Milner às obras de Y. Z. Kami, pintor iraniano e analisa de que forma a obra de um artista e a de uma pensadora da psicanálise podem reforçar-se e reavivar-se reciprocamente e, com isso, ampliar e aprofundar os insights adquiridos a partir de ambos
O artigo Não, duas vezes não: tentativa de definir e desativar a reação terapêutica negativa, como está publicado no IJP, foi reescrito por Jean Bertrand Pontalis e publicado, com o título atual em 1981, na edição de outono da Nouvelle Revue de Psychanalyse (volume n°24). Nele Pontalis desenvolve suas reflexões sobre “o território intermediário” que se refere ao cerne da experiência analítica: o espaço entre a doença e a vida real que é criada pela transferência mas também apontando para o paradoxo no qual está incrustada a linguagem psicanalítica, presa na contradição entre as demandas da conceptualização e as atualidade da experiência analítica e ainda caracterizando o espaço e tempo entre o não da resistência que emana da pulsão de morte e o não da defesa que provém de Eros, contra um objeto primário tanático
Na seção seguinte mais três artigos sobre teoria e técnica psicanalítica.
Ampliando a compreensão das organizações patológicas Paul Wiliams descreve diferentes expressões delas de acordo com as psicopatologias subjacentes diferentes. Sugere que as principais tarefas do analista é a “ de tornar a comunicação inteligível através da diferenciação dos pedidos não psicóticos do paciente incapaz de falar por si próprio devido às distorções psicóticas e sistemáticas criadas para deturpar esses apelos como catástrofes potenciais. Embora reconheça que “não é fácil acessar o triangular na experiência de uma pessoa cujo pensamento foi usurpado” insiste na necessidade de “… triangular as experiências de opressão a fim de afrouxar os controles da organização patológica sobre o ego.
No artigo seguinte, tendo como referência as características do campo analítico intersubjetivo, que envolve analista e paciente no mesmo caldo de cultura inconsciente e valendo-se do sonho como instrumento para lidar com baluartes que se formaram nessa análise, Jorge Luís Maldonado, através de elucidativo material clínico, motiva o leitor a acompanhá-lo na investigação de um desencontro no sentido e significado que permearam o desenrolar de uma análise.
Segue-se o comovente artigo de Cecília Taiana, a respeito dos “processos especiais de luto” enfrentados pelos analistas argentinos com familiares de milhares de pessoas “desaparecidas” pela ditadura militar em seu país. São “especiais” no sentido de que a realidade externa que constitui o ponto de partida do processo psíquico de luto, está ausente. A autora avalia que, nas suas qualidades traumáticas, a presença-ausência’ do corpo como uma mensagem enigmática que inicia o processo especial de luto se enquadra em certas características, e é isomórfica à teoria da sedução de Laplanche
E, encerrando o volume II Jorge Schneider & al. trazem uma alentada pesquisa que cobre seis décadas de investigação sobre a formação psicanalítica e o desenvolvimento profissional de analistas do Instituto de Psicanálise de Chicago‘.